Por que o lugar “de respeito” ou “de família” exclui a comunidade LGBTQIA+? Antes que surjam respostas carregadas do preconceito que estrutura a sociedade atual, faça o exercício de refletir sobre como esse discurso legitimado nas cidades, tidas como um agrupamento social, é utilizado, justamente, para afastar determinados grupos.
“Esses espaços representam, comumente, o lugar do medo na construção das cidades. Representam lugares em que o afeto não é bem-vindo. Uma cidade democrática, como deveria ser por definição, não deveria ser composta por espaços em que nós não podemos ser nós mesmos”, explica o advogado e pesquisador Gilson Santiago. O egresso da Uesb abordou, em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) na graduação em Direito, o recorte da LGBTfobia no direito à cidade, com a pesquisa “‘Isto é um lugar de respeito!’: a construção heteronormativa da cidade-armário através da invisibilidade e violência no cotidiano urbano”.
Segundo ele, o estudo buscou compreender como a cidade se organiza, por meio dos discursos, da violência e do medo, em torno do que é considerado “normal”, em detrimento do que, ao não se enquadrar nessa dita normalidade, é apenas diferente. Ou seja, uma cidade baseada na heterocisnormatividade. “Há uma teia de poderes que estruturam esse espaço, estabelecendo o que é e o que não é aceito. Esse espaço nos é interditado de diversas formas”, sintetiza.
Sua análise aponta que os lugares públicos, como bares, restaurantes e shoppings são tidos como “lugares de respeito”, em uma espécie de sacralização que nega a gays, lésbicas, bissexuais, transsexuais e, sobretudo, travestis, o acesso a esses espaços. “Por que normalizamos o absurdo de pessoas serem espancadas até a morte por segurarem as mãos em público?”, questiona o pesquisador. “Ser LGBTI+ na cidade é desrespeitoso a quem? Por que há um silêncio conivente com essas agressões – tanto por parte da sociedade, quanto do poder público?”, continua.
A cidade-armário – Organizadas a partir de estruturas de poder (econômico, social, político e religioso, por exemplo), as cidades estão, permanentemente, sendo disputadas por sentidos e interesses. “Mas há, penso, um nível mais profundo, enraizado em nossa constituição social, que determina e que nos conduz a aceitar que espaços sejam tacitamente interditos para determinados grupos sociais”, define Santiago. De acordo com o estudo, essa é “uma estrutura de proteção daquilo que é considerado mais importante por quem domina tais poderes”. Ele complementa, ainda, que essa condição atinge não só pessoas LGBTQIA+, como também pessoas em situação de rua, negros e mulheres.
“É mais fácil apontar quem não são os donos das cidades: todos aqueles desprovidos de poder capaz de influir nessa dinâmica. E esses são a maioria”, esclarece Santiago. A pesquisa mostra que a cidade, construída em uma lógica trabalho-casa, não parece ser capaz de assegurar, para esses grupos, nem mesmo o acesso aos dois espaços básicos.
Para o estudioso do direito à cidade, professor Cláudio Carvalho, a categoria “cidade-armário” mais do que um termo para designar o apagamento das sexualidades e identidades de gênero que não estão no espectro do moralmente aceitável, é uma denúncia à invisibilidade que legitima a violência. Dados do Relatório “Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+ no Brasil”, do Grupo Gay da Bahia, mostram que, a cada 36 horas, um LGBT brasileiro morre, vítima da homotransfobia. Assim, o Brasil é o país que mais comete crimes contra as minorias sexuais: em 2020, 237 pessoas LGBT+ tiveram morte violenta (224 homicídios e 13 suicídios).
“É necessário chegar à percepção de que a violência que vitimiza gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, dentre outras configurações de sexo, gênero e desejo, não é de ordem individual, mas também coletiva, simbólica, cultural e institucional”, ressalta Carvalho, docente da Uesb e orientador do trabalho.
Orgulho e reafirmação – A cidade-armário que faz com que as pessoas LGBTQIA+ não sejam bem vistas, também as rotula como influências negativas. “É extremamente comum ver pessoas heterossexuais se beijando na Praça Tancredo Neves, às 15 horas, enquanto crianças passam ao redor, alimentando os peixes. Ninguém seria capaz de dizer que esse não é um espaço ‘de respeito’. Mas, tudo muda de figura se dois homens estão de mãos dadas num banco da mesma praça. Somos ensinados a aceitar a primeira imagem como normal e a segunda como uma falta de respeito à família”, denuncia Santiago.
Por isso, ele lembra que datas como o 28 de junho, Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, e a ocupação de espaços cotidianamente negados a esse grupo fazem parte de um importante processo de reafirmação da sua própria existência nas cidades. “Isso encontra espaço na reafirmação do orgulho de sermos quem somos. É como se a cidade gritasse, por meio do medo, que essas pessoas não são bem-vindas ali. Mas nós não queremos ter medo, queremos viver. Não reivindicamos privilégios. Queremos apenas o rompimento de um pacto que acaba por silenciar toda e qualquer reinvindicação de vida nas ruas”, conclui o pesquisador.