Um dos setores mais afetados durante a pandemia e por causa do isolamento social é o da Cultura. Desde 2020, cinemas, teatros, museus, casas de shows e outros espaços culturais deixaram de realizar atividades com a presença do público. Um paradoxo, já que, ao mesmo tempo em que foi fortemente impactada, a área cultural nunca foi tão essencial para alimentar a alma, contribuir para a Saúde Mental, amenizar a melancolia e a saudade do contato.
Desde que o distanciamento social começou, o consumo da arte aumentou, seja por meio de livros, filmes, músicas, ilustrações, vídeos ou pelas mídias sociais. Muitos artistas, por conta da proibição de aglomerações, repensaram seu contato com o público e tiveram ideias incríveis. Nesse cenário, várias questões fazem parte da rotina de quem trabalha com a arte. Como viabilizar apresentações de dança em plena pandemia? De que forma promover o teatro sem o encontro? E a produção audiovisual, é possível diante de tantas restrições sanitárias?
Palavras como reinvenção, ressignificação, adaptação e reconfiguração dão conta de como chegar a essas respostas, ainda que essas práticas sejam presentes, constantemente, no cotidiano dos artistas antes mesmo da pandemia. O professor Francisco André Sousa Lima, que atua no curso de Teatro da Uesb, campus de Jequié, alerta que, no campo das Artes Cênicas, esses desafios são perenes. “Estamos em estado de exceção tanto no cenário político quanto social e sanitário. Esse cenário que agora atravessa as outras áreas, que é de sustentabilidade, de pensar o isolamento social e as consequências econômicas desse isolamento, nos acompanha desde que o brasileiro começou a fazer teatro, dança, música, as áreas culturais”, avalia.
De acordo com o professor, as políticas nunca foram muito auspiciosas no campo cultural. “Viramos pauta só a partir da década de 1990. Existem várias lacunas que não são preenchidas e tem ainda a dificuldade de se firmar enquanto um espaço de mercado. A cultura como um todo, principalmente as artes, geram emprego e renda, mas os mecanismos que existem ainda não dão conta dessa diversidade e das especificidades do fazer artístico, que não é apenas do ponto de vista econômico. A pandemia só agrava uma realidade que já era precária”, detalha.
Francisco destaca a falta de investimentos e de políticas públicas como um dos principais problemas enfrentados pela área. “A lógica dos editais de fomento foi deixada de lado nos últimos anos. Esse é um grande problema da área cultural porque um dos primeiros setores a sentir isso é o campo artístico, independente do estado de pandemia. Temos pouquíssimos mecanismos de proteção, inclusive alguns até polêmicos, no caso da Lei Rouanet, que é uma tentativa de proteção desse campo cultural que ainda não dá conta de chegar à ponta”, explica.
Reinvenções – Com a pandemia, as dificuldades continuaram sendo superadas. Ao longo desse período, Francisco desenvolveu o projeto de extensão “Diálogos da Coxia”, rodas de conversa voltadas aos artistas e à comunidade para refletir sobre o momento atual e também propor soluções para a cadeia produtiva das Artes Cênicas. “O fato de transpor um espetáculo para o ambiente virtual é, na verdade, uma experimentação e nós, artistas, somos ávidos por experimentação. Sempre tiramos uma lição positiva dentro de um contexto que é triste”, pondera.
Essa também é a percepção da professora do curso de Dança da Uesb, Vânia Oliveira. Para ela, as artes sempre foram do campo do possível e do impossível e, na pandemia, não foi diferente. “Mais uma vez, nos reinventamos para não sucumbir, não morrer com tantas violências que nos são impostas desde que o mundo é mundo e desde que a arte foi apresentada como uma expressão política, como caminhos para ressocialização, humanização, denúncias e anúncios das nossas conquistas”, ressalta.
Em um estudo realizado por Vânia, ela apresenta o corpo como texto. “Digo, poeticamente, que o corpo é a caneta que escreve, e as nossas memórias, reflexões, histórias, ancestralidade, tudo que nos compõe enquanto sujeitos é a tinta que preenche essa caneta. Assim, vamos assinando e escrevendo a história. Em um país sexista, misógino e preconceituoso, a arte se apresenta como ameaça. E quem quer isso?”, questiona. Para a professora, é necessário enfatizar a importância dos esforços coletivos sem abrir mão das singularidades. “Independente das diferenças e dos sentimentos que temos pelo outro, é importante entender o lugar do outro, que ele tem valor para a composição desse lugar, dessa comunidade”, reflete.
Apesar de todos os desafios e percalços, Vânia, que trabalhou com a Mostra Virtual dos Estágios Supervisionados em Dança durante a pandemia, propõe a escuta e a troca de experiências. “Tenho dito aos alunos: pare, silencie, escute você. Agora é hora de ativar o nosso ouvido interno para se entender e encontrar caminhos para isso. E a retomada nas aulas da Uesb foi assim, com trocas entre os colegiados, ouvindo colegas que já trabalham no on-line antes da pandemia. Fizemos essa escuta, essa parceria, e tudo na base no acerto e erro, sem medo. Ainda erramos muito, apesar da preparação que tivemos, mas a ação tem nos ensinado”, analisa.
Audiovisual – Enquanto áreas como Teatro e Dança e tantos outros segmentos da arte vivenciam momentos de muita dificuldade, o audiovisual está vivenciando a contramão desse movimento. O período é marcado pela explosão de possibilidades de mercado, desde o Cinema até a produção de vídeos para aulas e lives.
A professora do curso de Cinema e Audiovisual da Uesb, Adriana Amorim, acredita que esse momento de boom deve ser usado para compreender que um curso de Artes precisa ser construído com subjetividades e, também, com elementos próprios do Audiovisual. “O Audiovisual é uma realidade na nossa vida e os cursos da área estão se pensando nesse lugar. O mercado do Audiovisual explodiu com demanda de pessoas que saibam editar vídeos, sons. Há mercado tanto do ponto de vista da criação subjetiva quanto do ponto de vista prático e técnico”, analisa.
Na pandemia, Adriana esteve à frente de cursos de extensão de Cinema e Teatro, com foco na escrita e interpretação e, também, com um projeto voltado para estudantes de escolas públicas. Ela destaca a importância de promover o retorno das aulas e atividades que, mesmo com dificuldades, trouxe o encontro da forma que fosse possível. “No Colegiado de Cinema, sempre tivemos um entendimento muito preciso de que não iríamos transportar o presencial para dentro das telas, mas que estaríamos abertos para poder compreender e construir essa relação com os estudantes com todos os seus problemas sociais, psicológicos, emocionais. O fato de se trabalhar com arte nos ajudou muito nesse ensino remoto porque estamos acostumados e é da nossa natureza o desafio, a dificuldade, a recriação”, conta.
Desafios e aprendizados – Profissionais do campo artístico, Francisco, Vânia e Adriana entendem ser fundamental que os olhares se voltem para um processo de conscientização para quem produz arte e os holofotes trazidos pela pandemia devem ser aproveitados para essa compreensão. “Imagine você, sem nenhuma arte, sem nenhuma música, sem nada na TV que fosse artístico, sem nenhum quadro, sem nenhuma beleza exposta para você olhar, sem nenhum livro. Não tem vida, não tem humanidade assim! E é contraditória essa relação que temos com a arte porque a gente entende isso quase como se brotasse em árvore. O momento que estamos vivendo permite que as pessoas entendam esse processo e que haja a valorização desse profissional”, reflete Adriana.
Mesmo diante de tantas dificuldades que sempre fizeram parte da rotina de quem produz cultura, não há dúvida de que a arte é essencial. Nesse cenário, Francisco aponta como positivos os mecanismos que a pandemia acabou gerando. “A Lei Aldir Blanc, por exemplo, foi uma resposta eficiente, uma imposição social. Não há como negar que o fortalecimento e a unidade da classe artística é algo que está no nosso fazer artístico e se acirrou ainda mais na pandemia. A Lei Aldir Blanc e a Paulo Gustavo (que está sendo proposta) talvez deixem aí um legado ou, pelo menos, uma reflexão de vias e estratégias para que o recurso chegue nos pequenos municípios”, reflete.
Adriana ainda faz uma referência a Aristóteles para refletir sobre os aprendizados trazidos com esse cenário. “Estamos vivendo um momento histórico que, nem de longe, é o pior da humanidade, apesar de todo o sofrimento. Se a sociedade está pensando no agora e em resolver essa questão, cabe ao artista pensar no como deve ser. O Batman pensou em videochamada muito antes de nós. A arte é esse lugar de sonhar futuros e cabe à sociedade, à ciência, à tecnologia executar, tornar esses sonhos que foram sonhados por artistas possíveis”, afirma.
Para Vânia, é fundamental promover a construção da coletividade, como lembra um provérbio africano, citado por ela, “Se você quiser ir rápido, vá sozinho, mas se você quiser ir longe, vá em grupo”. A professora ainda lembra que é necessário a reinvenção através da reativação das memórias. “A dança atualiza os nossos conhecimentos e nos permite viver e não sobreviver. Viver é fundamental, sobreviver não nos interessa”, conclui.
Você pode conferir o bate-papo completo com os três convidados no penúltimo episódio do podcast “Com a Palavra – As vivências universitárias durante a pandemia”.